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Palestra de Humberto Ávila sobre Segurança Jurídica, Tributação e Desenvolvimento 73415y
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Um dos maiores estudiosos brasileiros do assunto, com doutorado na Alemanha e estágios de pós-doutorado naquele país e também em Harvard, nos Estados Unidos, o professor de direito tributário Humberto Ávila, da USP, fez em sua palestra um resumo das teses que apresenta em profundidade em seu livro Teoria da Segurança Jurídica, de 744 páginas, que o coordenador do seminário, Everardo Maciel, definiu como um “verdadeiro tratado sobre o tema”.
Ele tratou de três aspectos que considera essenciais para a segurança jurídica tributária. “Só existe segurança quando o direito for compreensível, estável e previsível”, afirmou, atribuindo a esses fatores relação com o tempo.
A compreensão diz respeito ao presente: “O direito para ser seguido precisa ser no mínimo bem compreendido”.
A estabilidade, com a agem do ado para o presente. “O contribuinte que confia no direito ontem não pode ser traído pelo próprio direito hoje. Por essa razão que o direito protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, a proteção da confiança, as situações consolidadas, as preclusões, prescrições, decadências”, exemplificou.
Já a previsibilidade se refere à transição do presente para o futuro. “O contribuinte, quando age, precisa minimamente prever quais são as consequências que serão aplicadas no futuro aos atos que praticar no presente”, disse.
Em seguida, apontou os principais problemas que existem hoje no Brasil nessas três dimensões. Humberto Ávila criticou a prática, comum no País, de não se buscar o significado preciso das palavras e assim dar margem a possibilidades muito elásticas de interpretação. “Não há país no mundo que seja desenvolvido e no qual as palavras não tenham significado”, alertou.
Citando decisão recente da Suprema Corte dos Estados Unidos, que orientou os tribunais daquele país a declarar nulas as leis mal formuladas pelo Congresso, ao invés de tentar corrigi-las, argumentou que boa parte dos problemas de insegurança jurídica verificados hoje no Brasil se devem à falta de determinação do Judiciário em exigir mais qualidade nas decisões do Legislativo.
“Sabem por que no Brasil a legislação é ruim? Porque o Supremo Tribunal Federal não declara a inconstitucionalidade das leis por serem ruins”, afirmou. “Nós temos que recuperar o papel didático dos tribunais e começar a declarar a inconstitucionalidade de normas que sejam contraditórias, que sejam vagas demais, ambíguas demais. Porque o contribuinte tem que se pautar ou pautar a sua conduta com base em algum direcionamento.”
Humberto Ávila condenou a prática dos entes federados de instituir ou aumentar impostos por meio de regulamentos, e não de leis, como exige a Constituição. Criticou também mudanças de orientação na jurisprudência que produzem efeitos retroativos, violando direitos dos contribuintes.
Ao final da palestra, em conversa com Everardo Maciel, chamou a atenção para o risco que o País corre com a instituição da modulação dos efeitos de decisões judiciais para proteger as finanças do Estado. Essa figura jurídica, como se sabe, é empregada em casos nos quais o Estado sofre uma derrota judicial que lhe obriga a devolver grandes somas aos contribuintes, geralmente em processos que levam muitos anos ou até mesmo décadas para serem julgados. A modulação busca flexibilizar a condenação e reduzir esses valores para minimizar os efeitos sobre os cofres públicos.
Segundo Humberto Ávila, esse recurso estimula o desrespeito à Constituição por parte do Estado, que acaba se beneficiando financeiramente de leis inconstitucionais. “O direito produz muitos efeitos, um deles é definir o que é certo e o que é errado. Agora, se o certo for igual ao errado, eu fico pensando que tipo de cidadania vai haver no Brasil e que tipo de exercício de poder público vai haver no Brasil”, ponderou.
A seguir, a transcrição da palestra:
Continuar...Palestra: Segurança Jurídica, Tributação e Desenvolvimento
Palestrante: Humberto Ávila
Currículo (em 25/6/19): Doutor em Direito (Munique, 2002), com estágios pós-doutorais em Teoria do Direito (Harvard, 2006) e Direito Tributário (Heidelberg, 2007-2008; Bonn, 2008-2009), atua como professor titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo (USP).
Transcrição da palestra
Boa tarde a todos, eu queria inicialmente agradecer o convite que me foi feito pelo meu querido amigo, o doutor Everardo Maciel, uma satisfação participar de mais esse evento do ETCO, ainda mais sobre um tema tão relevante que é a segurança jurídica.
Como disse o doutor Everardo eu já tratei desse tema extensamente em um livro de 900 páginas que eu não tenho como resumir em poucos minutos e causa uma certa aflição ter tanto para falar em tão pouco tempo.
Eu naturalmente vou ter que destacar algumas questões que me parecem mais relevantes sobre o tema, especialmente tendo em vista que o tema já foi tratado por outros palestrantes e, a meu juízo, muito bem tratado por eles.
Eu acho que o primeiro ponto a ser destacado é o que significa segurança jurídica. É um tema que parece óbvio, mas não é. Eu apenas lembraria a todos que segurança jurídica pode ser segurança do direito, pode ser segurança por meio do direito, pode ser segurança contra o direito, pode ser segurança no direito.
A segurança por si só pode envolver determinação absoluta dos conteúdos, como pode ser a previsibilidade dos processos, e assim vai… Então, é um tema que é mais complexo do que pode parecer ser.
Eu costumo tratar do tema da maneira mais simples que me é possível, dividindo em três partes. E são essas as três partes da minha fala. Só existe segurança quando o direito for [1] compreensível, [2] estável e [3] previsível. Existem, então, digamos assim, três perspectivas que podem ser utilizadas para analisar o tema.
Ou a perspectiva do presente: o direito para ser seguido precisa ser no mínimo bem compreendido.
A segunda perspectiva é a transição do ado para o presente: o contribuinte que confia no direito ontem não pode ser traído pelo próprio direito hoje. Por essa razão que o direito protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, a proteção da confiança, as situações consolidadas, as preclusões, prescrições, decadências.
E a perspectiva do presente para o futuro: o contribuinte, quando age, precisa minimamente prever quais são as consequências que serão aplicadas no futuro aos atos que praticar no presente.
Então são essas três perspectivas. O direito tem que ser compreensível, estável e previsível.
O que precisa acontecer para o direito ser compreensível? Ele tem que ser minimamente claro e minimamente determinado. E é precisamente aqui que nós temos vários problemas no Brasil. Há infelizmente uma tradição de desapego aos significados das palavras, e esse desapego se dá tanto no nível vulgar – no cotidiano das pessoas –, quanto no nível técnico – nas normas jurídicas e nas decisões que aplicam as normas.
No plano do cotidiano eu peço permissão a todos para repartir com vocês uma crônica do Antonio Prata, intitulada “A Pátria dos Ponteiros”:
Um sujeito conversava com um alemão chamado Fritz, que rodava o mundo vendendo máquinas de tomografia. E aí pergunta para ele: “Fritz, você está acostumado com o Brasil?”
Ele diz: “Eu acho que eu estou acostumado, mas tem uma coisa que me incomoda, é quando o brasileiro diz ´tô chegando´. Quando fala com brasileiro e brasileiro diz ´tô chegando´, eu levanto do cadeira, olho para a porta do restaurante e o brasileiro não chega.”
Aí ele pergunta para o interlocutor: “O que significa então ´tô chegando´?
Ai o sujeito, com aquela dificuldade, diz: “Não, veja, é que ´tô chegando´ na verdade é ´tô saindo´. É porque as palavras no Brasil têm mais o significado da vontade do sujeito que as emprega do que a realidade que vai exprimir.”
E aí, ele, Fritz indaga: “O que quer dizer, então, ´tô saindo´?
[O interlocutor responde] “Não, quando o sujeito diz que está saindo é que tem que tomar banho, botar roupa para lavar e dar comida para os cachorros.”E aí ele diz: “Mas eu preciso lhe dizer mais uma coisa. Eu preciso explicar para você o que significa 15 minutos e 5 minutinhos.”
“15 minutos é o tempo mágico em que o sujeito chega no lugar. Da Mooca para USP, 15 minutos. Da Cantareira para Santo Amaro, 15. Mas é uma intenção, vai que todos os sinais estejam abertos, os carros estejam parados e simplesmente as ruas estejam todas abertas para que o sujeito chegue no local.”
“Mas 5 minutinhos é um problema um pouco pior. Porque ´5 minutinhos´ pode significar não só 15 minutos, como pode chegar a significar dias e há pessoas que estavam chegando em 5 minutinhos e até hoje não chegaram.”
E aí a conversa termina em que um sujeito olha para o outro e diz assim: a gente pediu já há um tempão a feijoada nesse bar…
Chama o garçom e diz: “Poxa, a gente pediu já faz um tempão.”
“Não se preocupa amigo, está chegando.”
Por que eu conto essa história? Porque há no cotidiano o emprego das palavras sem que elas sejam carregadas de sentido direcionador e isso está de algum modo migrando para o âmbito da aplicação do direito. Não por razões de praticidade, de comodidade ou de incompetência. Mas por razões teóricas. Há quem entenda que as palavras não possuem sentido, há quem entenda que cada caso é um caso e, portanto, apesar das palavras terem sentido, elas não devem ser aplicadas em todos os casos. E isso quem define é o aplicador.
Então, como é que funciona um sistema jurídico? Um sistema jurídico só funciona se as palavras exprimirem significados. O termo significado é um termo utilizado de maneira mais simples para conotar conceitos.
O que são conceitos? São significados. E há, por incrível que pareça, por parte da doutrina e por parte do Judiciário a ideia de que as palavras seriam todas elas tão indeterminadas que não poderiam ser objeto de segmento e este entendimento é que precisa ser revisto.
E como é que isso pode ser feito? Bom, atribuindo às palavras o seu significado preliminar, não ampliado nem , apenas o seu significado estrito. Isso tem sido feito continuamente pelo Supremo Tribunal Federal.
Quando o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade daquela lei que cobrava contribuição sobre autônomos, utilizou o termo salário com o significado que era atribuído há décadas pelo direito do trabalho: como remuneração paga pelo empregador ao seu empregado considerando empregado aquele que mantém vínculo de subordinação habitual com seu empregador. Todos os operadores do direito quando leem a palavra salário recebem esse significado.
A mesma coisa aconteceu com o Supremo quando decidiu a respeito da ampliação da base de cálculo pela lei 9.718 nas contribuições sobre, então, faturamento. Faturamento era definido pela legislação anterior à Constituição como sendo o produto da venda de mercadorias e da prestação de serviços. Os operadores do direito quando liam aquela palavra, entendiam dessa forma.
E assim há muitas decisões do Supremo no mesmo sentido. Qual sentido? As palavras não são ocas, elas vêm carregadas de sentido. Mas qual sentido? Aquele que os operadores entendem como consolidados.
Às vezes os legisladores estipulam o significado de maneira expressa, mas às vezes de maneira implícita também [se] define o significado.
Não há país no mundo que seja desenvolvido e no qual as palavras não tenham significado. Não há essa possibilidade por uma razão muito simples: o contribuinte, ele tem que pagar os tributos. Os tributos têm data de vencimento. Até o final do mês o sujeito tem que definir o que vai pagar, sobre o que vai pagar e quanto vai pagar. E naturalmente que essa decisão só pode depender da legislação aplicável. Não poderá jamais depender de uma decisão a ser proferida vinte anos depois por um juiz constitucional, baseada essa decisão nas consequências que supostamente advirão da prolação da decisão.
Porque a decisão que vai ter que ser feita pelo cidadão é a decisão baseada na legislação. De tal sorte que aqui o que é preciso retomar é a posição firme do Supremo Tribunal Federal, que está perdendo a sua posição firme.
Eu preciso pegar o meu celular para ler uma decisão do dia 24 de junho de 2019 da Suprema Corte dos EUA. Olhem que maravilha esta corte. Está em inglês eu vou traduzir:
“Na nossa ordem constitucional, direito vago não é sequer direito. Apenas os representantes eleitos do povo no Congresso é que têm o poder de estabelecer leis criminais novas. E quando o Congresso exerce este poder, ele deve escrever as leis de modo a avisar às pessoas comuns aquilo que o direito demanda delas. Leis vagas transgridem ambos os requisitos constitucionais. Elas abrem mão da responsabilidade para definir comportamentos criminosos para promotores e juízes não eleitos e deixam o povo sem segurança para saber quais serão as consequências atreladas à sua conduta.
Quando o Congresso edita uma lei vaga, os tribunais devem, diante dessa nova ordem constitucional, em vez de aprimorar a lei, devem tratar essa lei como nula e impor ao Congresso que legisle novamente.”
Vejam que interessante. Sabem por que no Brasil a legislação é ruim? Porque o Supremo Tribunal Federal não declara a inconstitucionalidade das leis por serem ruins, é por isso.
Sabe por que a atividade istrativa no Brasil não é tão boa? Porque o CARF valida absurdos. Nós temos que recuperar o papel didático dos tribunais e começar a declarar a inconstitucionalidade de normas que sejam contraditórias, que sejam vagas demais, ambíguas demais. Porque o contribuinte tem que se pautar ou pautar a sua conduta com base em algum direcionamento.
Se tem uma norma que manda ir para esquerda e outra norma que manda ir para direita. Ou uma norma que tem um ponto de interrogação, que não é nem para direita, nem para esquerda, nem para cima e nem para baixo, o contribuinte hesita. E o contribuinte que hesita é amedrontado, não investe porque tem receio das consequências que vão ser atreladas aos seus atos no futuro.
E aqui então nós temos um problema, nós temos que entender que a segurança jurídica é um princípio constitucional que determina a clareza e a determinação. Pode não ser absoluta, mas existe a determinação possível.
Nós sabemos quando uma norma pode ser seguida e quando uma norma não pode ser seguida. E quando ela não puder ser seguida só com base nela, sem o regulamento, essa norma tem que ser declarada inconstitucional. Até hoje, eu não conheço uma lei que tenha sido declarada inconstitucional por excesso de indeterminação pelo Supremo Tribunal Federal.
Aqui nós temos um problema.
A Suprema Corte norte-americana já fez, corte constitucional alemã já fez. Mas o Supremo Tribunal Federal, que adora copiar essas cortes, não fez.
Qual é o segundo problema? O segundo problema, relativo ainda à falta de clareza e o excesso de indeterminação das normas, é o excesso de normas infralegais. A nossa Constituição foi magistralmente escrita, ela diz: “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Isso no plano geral, porque no plano tributário ela é mais clara ainda e mais forte: “Os entes federados não podem instituir ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça”. O que é o “o”? É o instituir ou aumentar. A própria lei é que deve definir isso. A própria lei, jamais o regulamento.
E aí existem no Brasil regulamentos que se proliferam independentemente da lei. Nós sabemos que a compatibilidade dos atos normativos infralegais com a lei pode significar ausência de contradição, autorização e vinculação. No Brasil, os autores podem não gostar disso, mas a nossa Constituição estabeleceu um sistema de predeterminação legal. E tanto é assim que o artigo 84, inciso 4, fala que os regulamentos servem para dar fiel execução à lei. Querem algo mais claro do que isso? Fiel execução à lei.
E como é que existem no Brasil regulamentos independentes e autônomos? Como é que existe no Brasil a instrução normativa 1,700, com 317 artigos? Não pode. E por que o Judiciário não declara tudo inconstitucional? Não sei. Tem alguma coisa errada nos livros que essas pessoas leem ou nos livros que eu ando lendo, vamos dar o benefício da dúvida.
Então, aqui nós temos um problema. Eu morei nos EUA para estudar, morei na Alemanha para estudar. O que existe lá é um sistema de determinação. Não é que as palavras não possam ter mais de um significado, elas às vezes devem ter um significado, o que é diferente.
E aí eu não vou cansá-los com relação à teorias da linguagem, argumentos etc. Mas as palavras vêm carregadas de sentido. Então alguns ministros céticos, que entendem que a interpretação pode atribuir qualquer significado às palavras, estão completamente equivocados.
E isso está produzindo efeitos que contribuem para a insegurança jurídica. Basta ver a decisão mencionada pelo doutor Quiroga, o sentido de que serviço – que durante 30 anos foi entendido como obrigação de fazer –, lá pelas tantas foi entendido como utilidade econômica. Nada mudou, apenas a decisão do Supremo é que entendeu dessa forma.
E qual foi o efeito? Terminou-se tributando plano de saúde e seguro, que é de competência da União Federal pelo IOF. Claro que o sistema não tinha como fechar, tendo em vista que a discriminação de competências é rígida e excludente e exclusiva.
Qual o outro aspecto para o qual eu chamei a atenção de todos no início? É a transição do ado para o presente.
O contribuinte age sempre com base no direito. Com base em formas, categorias, tipos normativos. E é por isso que ele não pode, tendo confiado no direito no ado, ser traído pelo próprio direito no futuro. De tal sorte que, se houver uma mudança, essa mudança pode ser feita, mas só pode produzir efeitos para o futuro. Isso está estabelecido com todas as letras no artigo 146 do Código Tributário Nacional.
Apesar disso, todos nós conhecemos mudanças de orientação que produzem efeitos desde o início da edição da lei, portanto, com efeitos retroativos.
Então qual é a ideia da estabilidade do direito? É que o contribuinte só pode agir com base no direito e ele precisa, portanto, confiar na permanência do direito no tempo e precisa confiar que os efeitos jurídicos atribuídos no momento em que ele pratica os atos serão mantidos no futuro e não desfeitos por uma nova lei.
E aqui eu faço questão de mencionar uma relação que me parece muito relevante. Que parece teórica, mas na verdade é a mais prática possível, que é a relação entre este dever de confiabilidade no direito e a dignidade e a liberdade.
Apenas para dar um exemplo. Vamos imaginar que o professor chegue no primeiro dia de aula e diga: “Todos os alunos ganham presença se chegarem às 8 horas.”
No último dia de aula o professor diz: “Eu estou mudando a regra, só ganharão presença os alunos que chegarem aqui às 7 horas da manhã. E esta regra vale desde o início do semestre”.
Qual o problema? O problema é que a conduta dos cidadãos já foi praticada. Os alunos não podem chegar mais cedo desde o início do semestre, só podem chegar mais cedo nas aulas seguintes. As aulas adas aram. As condutas praticadas se exauriram.
De tal sorte que submeter os alunos a uma regra que não existia no momento em que a conduta foi praticada, é não só enganar os alunos. É surpreendê-los com consequências com as quais eles, no momento da ação, não podiam contar.
É tratar o indivíduo como um objeto, não como um ser responsável e livre, que pode adotar a conduta X ou a conduta Y. E prever que se adotar a conduta X, terá consequência A ou se adotar a conduta Y, terá consequência B.
Porque se ele adota a conduta X esperando A, mas recebe B, ele está sendo surpreendido, enganado, está sendo manipulado. Ele está sendo tratado como um objeto, não como um ser humano autônomo e racional que delibera a respeito do que ele faz prevendo as consequências que serão aplicadas e assumindo responsavelmente essas consequências.
É por isso, meus caros, que toda vez que o direito é retroativo, toda vez que se viola o direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada ou situações consolidadas de fato, não é só um problema de segurança jurídica. É um problema de dignidade humana. É um problema de violação do direito fundamental de liberdade. E isso, meus caros, é extremamente grave.
Mas não fosse apenas grave pelo direito fundamental é violado, existe um problema relacionado ao desenvolvimento. Se o sujeito não consegue entender o que o direito estabelece, não consegue prever as consequências que serão aplicadas no futuro e fica com medo de que aquilo que ele fez no o (que era correto) e a ser no presente incorreto…, quem é que vai investir no Brasil? Quem é que vai alocar dinheiro, tempo e recursos humanos esperando por algum retorno, se o sujeito não pode confiar no maior instrumento de confiança da sociedade moderna, que é o direito. Não tem como.
Então, vejam, isso adquire uma relevância maior quando nós falamos, por exemplo, em várias questões do direito tributário como mudança de jurisprudência, surpresa do contribuinte. Eu posso mencionar dezenas e dezenas de exemplos, vou mencionar alguns.
A MP do Bem prometeu benefícios fiscais para o setor químico, para o setor exportador até 2018. Todos os contribuintes investiram, alocaram a sua capacidade de investimento pensando: o legislador prometeu que até 2018 eu iria ter crédito presumido, alíquota zero e por aí vai. Não é que antes de chegar 2018 e, portanto, no meio do caminho, o legislador muda de ideia e suprime aqueles benefícios fiscais que tinham sido concedidos a prazo certo e sob condição.
Não tem como confiar no direito e não tem como investir. Isso não é uma coisa nova. Isso já acontece há muito tempo. O legislador promete, depois que o contribuinte vai lá e age e não tem como voltar atrás, mudam as consequências atribuídas aos atos praticados no ado, pegando o contribuinte de surpresa, tomando ele de assalto. E o termo me parece ser adequado.
Tem acontecido também muita mudança de jurisprudência. E a mudança de jurisprudência, ela termina provocando o mesmo sentimento de insegurança. Mas aqui, eu não sei se eu tenho tanto tempo, mas eu precisaria mencionar uma coisa que me parece relevante.
Tudo isso que nós estamos examinando diz respeito ao chamado princípio constitucional da segurança jurídica. O Código Tributário especifica, concretiza este mandamento constitucional em vários dos seus dispositivos. Às vezes faz bem. Às vezes nem tão bem. É preciso compreender os dispositivos do Código Tributário Nacional como sendo expletivos, isto é, eles especificam o que já consta da Constituição. Eles, por assim dizer, chovem no molhado.
Por que que eu estou dizendo isso? Porque o artigo 178 do Código Tributário Nacional diz o seguinte: que a isenção concedida a prazo certo e sob condições é irrevogável. Aí o Fisco vai lá e diz assim: “Não, o que você recebeu é a redução de base de cálculo, é crédito presumido e é alíquota zero, mas não é isenção”.
Meu amigo: é a promessa. É a segurança. O CTN especificou, mas especificou mal. O artigo 110 do Código Tributário diz assim: que o legislador tributário não pode alterar conceitos, institutos e formas de direito privado utilizados pela Constituição, direta ou indiretamente, para definir competências. Não precisava do 110. O legislador tributário não pode mudar a Constituição. Por que que não pode mudar a Constituição? Porque a Constituição é superior à lei. Mas o legislador, ele disse: não pode mudar conceito de direito privado. Aí o Fisco vai lá e diz assim: “Público pode. Quando quiser, não tem problema. Porque o CTN disse só privado. Público pode.”
Meu Deus do céu… Aí o artigo 100 do CTN diz assim: Quem confiar em atos normativos com eficácia normativa, decisões colegiadas e práticas reiteradas de istração não pode ser punido nem pode ser cobrado juros, nem multa.
Ótimo. E se eu confiei na jurisprudência consolidada do CARF? Não vale? “Ah, não vale, não está escrito, né?” Então, este pensamento, estou tentando ser educado, há damas no recinto, pequeno, tem que ser afastado. O CTN, pelas minhas contas, é 95% expletivo. Não precisava. Só precisa no país positivista em que as pessoas só entendem que é norma quando tem texto expresso. Aí precisa da bengalinha para poder aplicar. Mas um bom aplicador da Constituição já resolveria tudo com base na Constituição.
E por que que isso que eu estou dizendo a vocês é extremamente importante? Porque todos esses benefícios, que foram revogados, a revogação está sendo mantida por vários setores do Judiciário porque se prendem à lei. Ao termo que foi utilizado, sem perceber que este dispositivo do CTN é meramente expletivo. Seria, mais ou menos, como interpretar a Constituição da seguinte forma. O artigo 150 estabelece: É proibido instituir tributo com efeito de confisco. “Viu? Falou só tributo. Multa pode, obrigação ória pode. Porque só falou tributo.” Não, meu filho, as constituições ocidentais principais não têm esse dispositivo e chegam num resultado melhor do que esse pela eficácia do núcleo dos direitos fundamentais.
Então são essas dificuldades que fazem com que o direito termine não sendo aplicado adequadamente. Mas não é por falta de norma não, viu. É por falta de pessoas que consigam adequadamente transformar essas normas em decisões.
E por fim, meus caros, existe essa terceira dimensão que é a dimensão do presente para o futuro. A segurança jurídica não impede que o direito seja modificado. Apenas proíbe que ele seja modificado de maneira brusca, de uma hora para a outra, e de maneira drástica, com uma intensidade que, de repente, a a ser uma outra intensidade muito diferente.
Então uma coisa é alterar a legislação antecipando para o contribuinte que essa mudança vai ser feita e permitindo que possa adequar as suas atividades particulares ao novo regime jurídico. Outra coisa é mudar de um dia para o outro, pegando o contribuinte de surpresa, como se ele fosse um inimigo. “Ó, vou te pagar, ó”.
E uma outra questão é mudar o regime jurídico de maneira muito intensa, de uma hora para a outra. Então há mudanças de alíquota que mudam 300% de um dia para o outro, sob a alegação de que o presidente da República pode alterar as alíquotas dos impostos, IPI, IOF, importação e exportação.
O presidente da República pode fazer isso, mas ele não pode pegar o contribuinte de calças na mão. Não pode. E por que que não pode? Porque na Constituição tem o princípio da segurança jurídica que exige regras de transição de um regime jurídico mais brando para um regime jurídico mais oneroso.
Então o que me parece talvez que tenha que ser feito, e com isso eu já vou terminando, é que nós temos que mudar essa perspectiva de entender que a segurança jurídica é um princípio formal que diz respeito a como as normas são, digamos, feitas.
Não é isso. Nós estamos falando de um princípio que protege liberdade. Que protege como a cidadania é exercida e que define que tipo de Estado nós temos. Que é aquele que age na calada da noite. Que dá sustos no contribuinte. Que dá risadas, relativamente a atos que são irreversíveis. Ou é um Estado que respeita a iniciativa privada, que respeita a livre concorrência. Que respeita quem assume risco, porque no Brasil só um louco assume riscos.
Então, nós na verdade estamos tratando de um princípio, como disse o dr. Everardo Maciel esses dias, que é o princípio dos princípios. É como se nós tivéssemos aquela metáfora da balança, né. Normalmente aquela metáfora da balança ilustra o sopesamento entre princípios. Tem um princípio que fica de um lado, outro princípio que fica do outro e há este sopesamento. A segurança jurídica ou é a balança em si ou no mínimo os pés ou o material da balança.
Portanto, a segurança jurídica, ela não entra no balanceamento, de tal sorte que ela possa ser eventualmente descartada. E isso do ponto de vista teórico é importante porque há alguns juristas, inclusive do Supremo Tribunal Federal, que entendem que princípio é aquela norma que a gente sopesa. E todas essas normas ficam em igualdade de condições, de tal sorte que diante de um caso concreto há esse sopesamento e uma das duas pode ser descartada. Não a segurança jurídica! A segurança jurídica é o princípio dos princípios. É aquele princípio que instrumentaliza a validade e a eficácia de todos os outros. Por essa razão que um jurista espanhol, muitos anos radicado no México em razão da ditadura, Recasens Siches, ele dizia: “Há todo tipo de direito, até direito injusto, mas direito inseguro não há, porque ou o direito é seguro ou ele não é direito”.
Então com essas palavras eu agradeço a atenção de todos.
Questão de Everardo Maciel para Humberto Ávila:
EVERARDO MACIEL: O que que se tem a falar depois dessa aula magna do Humberto Ávila? Bom, eu tenho dificuldade para fazer perguntas e olha que eu me preparei. Li o livro dele inteiro e de fato não encontrei nada para fazer nenhum comentário, apenas fazer um registro aqui Humberto.
Foi um artigo que eu achei muito interessante do Celso Lafer, no Estadão, onde está centrado exatamente na sua obra. E ele faz uma observação, citando o economista Frank Knight, interessante para distinguir o risco e a insegurança: o risco implica a possibilidade de calcular, de avaliar, de mensurar. E a insegurança não. É justamente o que não se pode fazer nada disso.
HUMBERTO ÁVILA: Estaria tentado a dizer que a distinção que ele faz é entre risco e incerteza. Você falou insegurança. É incerteza. Uma coisa é saber que há uma margem dentro da qual as consequências irão cair. Uma outra é não saber sequer medir. Não se sabe se vai ser de 10% a 20% a alíquota. Pode ser qualquer alíquota.
Não se sabe sobre o que se vai pagar. Se é sobre isso ou sobre aquilo. Pode-se pagar sobre qualquer coisa. Aqui, nós entramos em uma questão difícil, por isso que eu ainda acho que o Poder Judiciário não entendeu adequadamente a sua função e está preocupado com outras questões que não são as questões fundamentais.
E aqui eu vou fazer uma crítica com toda a modéstia possível e também com todo o respeito, mas que me parece importante. Há um entendimento de alguns ministros de que o Supremo Tribunal Federal deveria se concentrar nas grandes questões. Liberdades civis, união homoafetiva, casamento entre pessoas ou união estável entre pessoas do mesmo sexo, questões relacionadas à discriminação etc., que são esses casos mais rumorosos do Supremo. E que outras questões menores, como questões istrativas e tributárias, não deveriam sequer ser objeto de análise pelo Supremo.
Se nós analisarmos esses casos tributários como uma questão de dinheiro, a gente até consegue compreender essa visão que me parece equivocada, mas se nós entendermos o direito tributário como exercício de liberdade e de propriedade, e desenvolvimento pelo indivíduo da sua personalidade e pela empresa do exercício do direito fundamental de livre exercício de atividade econômica, o significado dos casos de direito tributário é completamente modificado. Nada se faz no mundo sem dinheiro. E o modo como as pessoas fazem para obter esse dinheiro é o que define a sua personalidade.
Eu vou lembrar a todos um caso que foi julgado pela corte constitucional alemã, muito interessante. Eu vou contar o caso não utilizando palavras em alemão, mas da maneira mais sucinta possível. O legislador federal alemão permitiu a dedução de despesas com saúde e educação para as pessoas físicas que tivessem dois ou mais filhos, não um. Os contribuintes ingressaram em juízo alegando a inconstitucionalidade e o supremo deles declarou a inconstitucionalidade.
E por quê? Porque o direito tributário que deveria se apropriar do resultado econômico estava se metendo no modo como o resultado econômico é desenvolvido. Estava dizendo em outras palavras quantos filhos as pessoas tinham que ter. E o direito tributário tem que ficar no seu lugar, não pode se meter a isso. As pessoas se são livres para for sua família, devem ser livres, portanto, para definir quantos filhos têm. E não pode o direito tributário indiretamente influir em quantos filhos as pessoas vão ter ou no modo com que elas vão formar a sua família. Porque a liberdade familiar é direito fundamental.
Onde é que eu quero chegar com isso? Veja uma visão que o tribunal constitucional tem a respeito do direito tributário, uma visão completamente diferente. Direito tributário é modo de manifestação da personalidade, atinge exercício de direitos fundamentais caríssimos para a constituição, é coisa muito séria.
E o Brasil só é Brasil com o direito istrativo que tem ou deixou de ter. E com o direito tributário que tem ou deixou de ter. Então essa ideia de que caso importante é caso que envolve a liberdade civil, os outros casos são casos menores? De modo nenhum. Por exemplo, e aí eu termino, modulação de efeitos, que foi mencionado pelo doutor Quiroga, é uma coisa seríssima. Vamos imaginar um caso hipotético: a União Federal institui imposto de renda sobre algo que sabidamente não é renda. Sobre indenização por, sei lá, dano emergente. O caso demora vinte anos para ser julgado. Chega lá no final, porque tem que devolver muito, a União Federal pede modulação de efeitos.
Se o Supremo modula os efeitos desse caso, o que os entes federados vão pensar no futuro? O que a União vai pensar no futuro? Bom, se eu obedeço a Constituição e cobro imposto de renda sobre renda eu fico com o dinheiro, mas se eu descumpro a Constituição e cobro imposto de renda sobre algo que renda não é eu também fico com o dinheiro. A conformidade com a Constituição e a violação da Constituição tem a mesma qualificação jurídica. O certo fica igual ao errado. O sujeito que transgride a Constituição se beneficia com a própria torpeza.
E eu pergunto: no dia de amanhã, vai obedecer a Constituição de cobrar só sobre renda ou vai cobrar o imposto de renda sobre qualquer coisa, porque sobre renda não precisa ser? Então, veja, este efeito é um efeito que destrói o sistema jurídico.
Por quê? Porque o particular, ele age prevendo que aquela norma constitucional tem que ser obedecida. E que se ela não for desobedecida os atos viciados serão nulos desde o início. E o poder público tem que saber que se você violar a Constituição jamais poderá ter ganhos com essa atividade ilícita.
Quando o Supremo, até hoje ele não fez, ele fez um caso marginal, ele modulou. Mas até hoje ele não modulou. O dia que o Supremo modular, por questões não de segurança jurídica, mas de dinheiro, vai acabar o estado de direito no Brasil. E o Supremo está balançando.
E aí existe um dado que me deixa perplexo, vejam só: ICMS na base de cálculo de PIS/Cofins. Eu sei que é um caso controverso, o Supremo julgou pela inconstitucionalidade por quórum apertado de 6 a 4, mas foi essa decisão tomada pelo Supremo. Gostemos ou não, é a decisão do Supremo. Que já produz efeitos, segundo o próprio Supremo, apesar dos embargos de declaração.
Muito bem. Quando é que chegou esse caso no Supremo? Em 98, o primeiro caso chegou em 98. O ministro Nelson Jobim pediu vistas, ficou uns 2 ou 3 anos com o pedido de vistas. Depois o ministro Gilmar Mendes ficou 8 anos com pedido de vista. Nesse tempo, a União Federal entrou com a ADC 18, tentando fazer com que o caso fosse julgado por um novo quórum, porque havia ministros que tinham se afastado, se aposentado e até falecido.
O Supremo aceitou julgar, mas esse caso foi engavetado e nunca foi julgado. E aí foi julgado aquele que em 2006 estava 6 a 1 para o contribuinte, terminou sendo julgado em 2014 a favor do contribuinte, 9 a 2. E o Supremo disse: esse caso aqui não tem repercussão geral, nós temos que julgar um outro desde o início. Tudo bem, aí o Supremo julgou o outro desde o início em 2017. Essa decisão, está vigente, demorou, portanto, 20 anos para o supremo definir. E aí o que acontece? A Receita Federal produz aquela solução de consulta número 13 definindo que o valor é um em vez de outro, como disse o Supremo, e as coisas não se definem no Brasil.
Mas o ponto que eu quero destacar é o seguinte: quem é que demorou para julgar? Foi o contribuinte que demorou? O contribuinte vai ser punido por não receber de volta, porque tem que devolver demais, e quanto mais demorar mais vai ter que devolver? Eu fico perguntando: quem é o responsável pela demora?
Porque aqui existe um dado perverso. Se quanto mais demorar mais vai ter que devolver e quanto mais cobrar mais vai ter que devolver, então quanto mais inconstitucional for a lei e mais tardar o julgamento, maior a chance de ela ser declarada constitucional.
Vejam só, quanto mais inconstitucional for a lei maior a chance de ela ser declarada constitucional. É a inversão do conteúdo do direito. Porque o direito produz muitos efeitos, um deles é definir o que é certo e o que é errado. Agora, se o certo for igual ao errado, eu fico pensando que tipo de cidadania vai haver no Brasil e que tipo de exercício de poder público vai haver no Brasil.
Porque é uma forma indireta que o direito tributário tem de mostrar que tipo de estado de direito existe no Brasil. Eu acho que isso é muito mais importante do que se vai modular, não vai modular. Porque por trás dessa questão existe uma questão de fisionomia do sistema brasileiro. E o estrangeiro que olha – e o brasileiro que vive no Brasil – fica pensando: poxa, como é que eu vou contribuir para o desenvolvimento do Brasil investindo, se eu não sei mais o que é certo e o que é errado. Não tem como.