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- Palestra de Heleno Torres sobre Segurança Jurídica e Processo Tributário
- Palestra de Roberto Quiroga sobre Segurança Jurídica e Interpretação da Norma Tributária
- Palestra de Humberto Ávila sobre Segurança Jurídica, Tributação e Desenvolvimento
- Palestra de Hamilton Dias de Souza sobre Segurança Jurídica e Reforma Tributária
- Palestra de Gustavo Brigagão sobre Tributação do Século XXI
- Encerramento do seminário, por Victorio De Marchi
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O advogado e professor Roberto Quiroga, da faculdade de Direito da FGV de São Paulo, falou sobre fatores de insegurança jurídica relacionados com a interpretação da norma tributária. Para dimensionar o problema, citou o tamanho dos valores em discussão nas várias esferas de cobrança istrativa e judicial.
“Hoje, nós temos um contencioso tributário que já chegou a R$ 3,3 trilhões”, afirmou. “Nós estamos falando de metade de um PIB brasileiro. Então, de duas uma: ou o contribuinte está interpretando muito mal a norma jurídica ou o Estado está exagerando na aplicação da norma jurídica.”
Ele apontou a demora do sistema judicial para dar a palavra final na interpretação de questões fundamentais que afetam muitos negócios – por exemplo, a discussão sobre a dedução do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins – como parte importante do problema. Lembrou que a relação de forças entre o Estado, que dispõe da prerrogativa da autotutela, e os contribuintes é desigual. Lamentou o instituto da modulação das decisões, que colocariam os problemas fiscais do Estado acima do direito. E defendeu o chamado “garantismo” da Constituição brasileira.
“É claro que a gente tem que ver o lado do Estado”, disse. “Mas a segurança jurídica que nós estamos falando é a segurança que o texto constitucional dá para o contribuinte. Contra o arbítrio, contra a autoridade estatal com o seu direito de autotutela.”
Quiroga fez críticas à falta de embasamento conceitual de decisões tomadas pelos diferentes órgãos de julgamento, incluindo o CARF e o Supremo Tribunal Federal, e mencionou temas em que persiste grande confusão na jurisprudência. Citou, como exemplo, a tributação de lucros no exterior, apreciada pelo plenário do STF. “Ele não decidiu nada. Ele só confundiu todo mundo”, afirmou. “Dez votos diferentes. Eu não sei hoje dizer para o meu cliente como é a tributação do lucro no exterior.”
Após a palestra, respondeu pergunta do coordenador do seminário, o tributarista Everardo Maciel, sobre os serviços de consulta aos contribuintes oferecidos pelo fisco. Criticou a falta de preparo dos profissionais que realizam esse trabalho e também o risco de agirem de maneira parcial pelo fato de atuarem dentro do órgão arrecadador. “Se eu tenho um consultor que já está predeterminado a dizer não, o Instituto não vale nada. Talvez eu tivesse que ter um concurso para consultor”, sugeriu como meio de dar mais efetividade e imparcialidade às consultas.
A seguir, a transcrição da palestra:
Continuar...Palestra: Segurança Jurídica e Interpretação da Norma Tributária
Palestrante: Roberto Quiroga
Currículo (em 25/6/19): Mestre e doutor pela PUC/SP, é professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo (USP) e da FGV Direito SP.
Transcrição da palestra
Boa tarde a todos.
Boa tarde a todos. Obrigado, Everardo. Agradeço também ao ETCO o convite de estar com vocês para falar do tema de segurança jurídica e interpretação.
Obviamente que, enfim, já foi dito um pouco pelo presidente no preâmbulo da tarde de hoje e o professor Heleno também tratou aí do tema da segurança jurídica e do processo.
Na verdade, iria me anteceder ao professor Humberto Ávila, que felizmente já está na plateia, e iria falar sobre segurança jurídica como o início de toda a discussão nós vamos falar aqui.
Então eu vou, na verdade, fazer a minha palestra justamente tratando da interpretação e sua correlação com a segurança jurídica, deixando obviamente para o Humberto, com toda a sua precisão, tratar da segurança jurídica como um tema prévio a tudo que nós vamos falar. Creio que isso é fundamental para a nossa questão aqui.
E eu vou tentar também expor, não sei quantos minutos eu tenho, Everardo, uns 30 a 40 minutos? Enfim, em 30 minutos, dividir a palestra aí talvez em 4 partes.
A primeira, só rapidamente falar da complexidade do tema. Nós não estamos falando de um tema simples e quando você trata de segurança jurídica e interpretação da norma tributária, eu diria que a complexidade aumenta mais ainda.
A segunda parte que eu gostaria de falar, antes de entrar especificamente no tema da interpretação, é tentar identificar um sintoma, e nós vamos falar um pouquinho de contencioso, talvez, assim, toda a questão da interpretação, ela mostra um sintoma muito, no Brasil hoje, muito grave também, que é a questão desse contencioso que nós temos.
Numa terceira parte e numa quarta parte, eu separei alguns casos de interpretação. Interpretação istrativa, interpretação judicial de normas tributárias, para justamente mostrar esse campo da insegurança e da segurança.
Separei alguns casos práticos, até porque, apesar de professor da GV há 30 anos e da São Francisco há 15 anos, eu sempre me intitulo como um advogado que leciona. Eu não sou um professor que advoga.
Então, eu me considero mais um advogado que leciona e, claro, é dentro dessa perspectiva que eu gostaria de expor a vocês a minha maior expertise que é o meu dia-a-dia com a advocacia.
Mas, justamente para falar do sintoma, quando você fala de interpretação, onde que a gente vê claramente que alguma coisa errada está acontecendo? É o tamanho do nosso contencioso tributário no Brasil.
Eu e o Everardo temos falado muito disso. Hoje, nós temos um contencioso tributário de 3 trilhões e alguns outros bilhões [de reais]. Disse que já chegou a 3 trilhões e 300 bilhões de reais.
Ou seja, nós temos aí perto de R$ 1,8 trilhão em inscrição de dívida, nós temos um número de perto de 700 a 600 bilhões rodando no CARF todo ano, essa é a magnitude de temas dentro do CARF, e nós temos aí outros 500 ou 600 bilhões [de reais] de temas que não estão nem em inscrição de dívida, nem estão suspensos pelo processo istrativo, mas estão suspensos na justiça, por discussões como ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS e outros temas.
Nós estamos falando de um contencioso tributário, gente, de metade de um PIB brasileiro. Então, de duas uma: ou o contribuinte está interpretando muito mal a norma jurídica ou o Estado está exagerando na aplicação da norma jurídica.
É claramente uma doença. É justamente esse ponto que nos mostra o seguinte: alguma coisa está errada.
E o presidente [do ETCO, Edson Vismona] disse também uma coisa interessante, um dado. Isso são os números estáticos. A dinâmica é muito pior. As autuações federais por ano estão chegando perto de 200 bilhões de reais. Então, se nós falarmos em um prazo de cinco anos, nós teremos mais 1 trilhão em cinco anos. Sendo que, de toda a tributação federal, algo em torno de 30% são autos de infração com multa qualificada. Isso em termos nominais de auto de infração no último relatório de fiscalização do fisco. Algo em torno de 40% do valor total desse contencioso. Mostra essa doença que estamos falando de contencioso no Brasil.
Desses 3 trilhões e 300 bilhões, apenas 25% é tributo. É principal. O resto são multas cumulativas, multas punitivas com multas isoladas, que podem chegar a 200% (150 mais 50 de multa isolada) e juros SELIC, que são os maiores do mundo.
Qualquer empresa com cinco anos de uma inadimplência tributária está pagando 60% de SELIC. Ou seja, nós estamos devendo mais encargos do que tributo. E, claro, é impossível, é insolúvel um contencioso de 3 trilhões e 300 bilhões de reais. Não vai se pagar nunca.
Esse é o sintoma, essa é a doença. Então, quando se fala de interpretação é por aí que a gente vai, a gente não encontra um paralelo no dizer ou que realmente alguém está interpretando muito mal ou alguém está aplicando a norma de forma exagerada ou inadequada.
Eu acho que isso é uma consciência e cabe até um seminário só sobre contencioso. E puxando talvez um pouquinho aí da palestra do Heleno, que na verdade tratava também da questão do processo. Que era relevante saber como nós temos essa questão da segurança jurídica no processo.
A segunda parte que talvez eu gostaria de dizer é justamente sobre essa complexidade do tema. Interpretação não é só um tema teórico, obviamente, dentro de uma propedêutica que todos nós estudamos, mas também dentro de um tema prático, um tema do dia a dia.
E qual a razão? Simples.
Primeiro, quem interpreta? Quem vai interpretar? Nós interpretamos. Nós, digamos assim, advogados. O juiz interpreta? O juiz aplica a norma? Tem um processo de interpretação nesse sentido que eu falo. O Estado executivo interpreta na aplicação da norma? Ele interpreta. Ou seja, são vários agentes que na verdade acabam executando a mesma tarefa, mas com consequências totalmente distintas.
E nós sabemos, quando estudamos um pouco de teoria geral, que o que se interpreta são justamente os textos, para se construir uma norma. Então na verdade o que acontece é que se estão construindo muitas normas diferentes e nós não sabemos qual a certa a ser aplicada.
A grande questão, e isso também vai se colocar na questão da segurança jurídica, também como tema complexo, é segurança jurídica nós estamos falando para quem? Nós estamos falando de segurança jurídica para o Estado? Creio que não. Nós estamos falando de segurança jurídica para o contribuinte, que é justamente aquele que olha, identifica como a jurisprudência caminha – a jurisprudência istrativa e judicial. Ele na verdade vê como os doutrinadores se posicionam, ele identifica como o Estado aplica a norma e ele diz o seguinte: “vou seguir por essa linha”.
Só que ele não consegue mais precisar qual é a linha. Ou pelo menos ele toma uma linha que depois de alguns anos ele vai falar o seguinte: “essa linha não é a correta, interpretei errado”, numa linguagem mais vulgar.
É porque cada um interpretou o texto e construiu uma norma diferente daquela que o outro interpretou. Por isso que a gente fala que a interpretação é processo e é resultado nesse sentido. Essa é uma grande dificuldade hoje do aplicador do direito, principalmente do contribuinte.
Então nós temos que falar o seguinte: até que ponto a segurança jurídica existe e até que ponto ela pode ser utilizada com tranquilidade para o contribuinte? Quando ele identifica as decisões que ele lê, que ele entende, que ele efetivamente sabe como o tribunal se posicionou ou mesmo de posições doutrinárias nesse sentido.
E a grande dificuldade hoje é de como ele se posiciona frente a uma norma jurídica específica. Porque ele realmente não identifica ou ele fica em dúvida se deve seguir o caminha que seguia-se há X anos atrás ou se agora deve seguir o caminho eventualmente de uma jurisprudência mais atual.
Apenas a título de exemplo, e trazendo algum dos casos que eu vou comentar mais a seguir, é a discussão hoje da aplicabilidade de multas ou mesmo dos planejamentos tributários.
O que se discute é que muitos contribuintes quando eventualmente fizeram alguma operação de planejamento, fizeram o quê? Olharam a jurisprudência da época, olharam as decisões da época (istrativas e mesmo jurisprudenciais) e seguiram no caminho daquela interpretação. E depois de 10 anos eles são surpreendidos por uma modificação substancial daquela interpretação inicial. Já estamos falando de dois casos de insegurança. Cadê a segurança? Como eu consigo utilizar o raciocínio de uma época pretérita, que eu segui a orientação da época, que eu me fiei naquela jurisprudência que eventualmente era dominante, mas quando eu sofro eventualmente num momento posterior futuro num momento posterior futuro… é a discussão que, eu tenho certeza, o Humberto vai tratar: entre presente, ado e futuro. Como que a gente consegue essa segurança jurídica, dentro desse espectro, para o contribuinte, na visão do contribuinte.
Outro aspecto que eu também costumo dizer e acho que nesse momento é muito importante, Everardo, nós ressaltarmos é que no direito tributário nós temos uma coisa chamada autotutela por parte do Estado. Nós não estamos falando numa relação privada entre A e B onde eu tenho que buscar o estado Juiz para diminuir um conflito.
O Estado lança, o Estado tem o direito de autotutela, ele diz: “Há renda aqui, você é proprietário de um veículo automotor, você auferiu receita”. E a partir desse início de autotutela do Estado, eu posso ir contra aquele ato do Estado onde ele efetivamente disse o seguinte: “há o fato gerador”.
Diferente de outras relações nas quais eu preciso buscar o estado de juiz para dizer o seguinte: quem está certo e quem está errado, quem começa a dizer qual é o direito, qual é a interpretação correta?
Por isso que hoje se diz muito e se volta a dizer e se reafirma que na verdade a Constituição garante direitos para o contribuinte. É claro que a gente tem que ver o lado do Estado. É claro que o Estado é o financiador das tarefas públicas. É claro que como Estado ele deve existir justamente para atingir a sua finalidade. Mas a segurança jurídica que nós estamos falando é a segurança que o texto constitucional dá para o contribuinte. Contra o arbítrio, contra a autoridade estatal com o seu direito de autotutela.
E é dessa forma que a Constituição foi redigida e todas as constituições anteriores do Brasil. Nós não estamos num outro país onde nós não temos o garantismo. Nós temos o garantismo do contribuinte. Isso é importante frisar.
E nós estamos num momento de flexibilização dessa ideia. De que, na verdade, o Estado, a Constituição existe como proteção do Estado e que o contribuinte está em pares iguais ou com armas iguais. Ele não está com armas iguais, ele está totalmente dissociado daquilo que existe com esse princípio da autotutela.
Por isso que eu acho que a reafirmação dos princípios constitucionais, a reafirmação dessa ideia da Constituição como protetora dos direitos dos contribuintes, como direitos fundamentais. E a segurança jurídica sendo justamente uma parte desses direitos, é que é importante a gente ressaltar os pontos que agora eu me referi.
E eu trouxe alguns casos específicos no sentido de dar cor a essas discussões. De como as interpretações têm sido feitas e quais os pontos que devem ser analisados a respeito disso.
E eu vou dar o primeiro exemplo de que todos aqui acho que têm o conhecimento e vou compará-lo a alguns mais atuais.
Primeira questão que eu gostaria de dizer é que quando você interpreta textos e você constrói normas, portanto, as normas são diferentes. São de estaturas diferentes. Não quero aqui teorizar porque não é a minha prática, não é o meu métier, não é aquilo que eu gosto mais. Mas talvez um exemplo seja fácil.
É diferente quando eu eventualmente interpreto uma norma de estrutura, uma norma de competência, por exemplo, e é diferente quando eu analiso ou interpreto uma norma de conduta. Vamos dar o exemplo das imunidades?
Nós temos, por exemplo, imunidades que nós dizemos o seguinte: eu estou protegendo um valor, eu estou protegendo algo muito importante da sociedade. Vamos falar da liberdade de culto. O que nós temos experiência no Supremo Tribunal Federal? Essa imunidade, norma de estrutura, que diz o que as outras normas podem ou não podem fazer, toda a jurisprudência hoje consolidada no Supremo caminha a o quê? Para a ideia teleológica, finalística. É uma imunidade, portanto, é uma vedação que a Constituição impede a tributação dos cultos de qualquer natureza, mas a ideia qual é? Finalística.
Mas nós também temos outro tipo de imunidade, exemplo: a imunidade na exportação de produtos. É uma imunidade, está no texto constitucional. Mas talvez ela não tenha a importância dessa primeira imunidade. Por isso que a gente diz, talvez essa imunidade ela não seja interpretada tanto com critérios finalísticos.
Na verdade, talvez no primeiro eu tenha até um quase princípio. Ela não, ela é mais interpretada no modo sistemático. A ideia é dar organicidade ao sistema.
Por isso que eu digo, não tem sentido nós exportarmos tributos. Aí nós imunizamos os tributos na exportação.
Vamos dar um terceiro exemplo de imunidade: o ouro deve ser tributado a 1% quando sai da mina, artigo 153 da Constituição. É uma imunidade, está no termo constitucional. Eu vou interpretar igual a primeira? Não, é intepretação literal. É uma casuística porque, na verdade, quando se fez a Constituição o Uruguai disse que produzia 50 toneladas de ouros quando não tem uma mina de ouro.
Vejam, normas constitucionais, imunidades, que nós estudamos com tanta importância, e interpretações diferentes. Normas de estrutura, normas de conduta. E como eu vou buscar esse equilíbrio na interpretação ou qual interpretação eu devo dar a uma determinada norma?
Talvez alguns exemplos do Supremo nos deem algumas dicas ou pelo menos algum direcionamento.
Por exemplo, as imunidades, eu não preciso falar, a imunidade do livro. Claramente a ideia é teleológica. É claro que eu não vou entender o papel sob o ponto de vista simplesmente denotativo, ou seja, especificamente é o papel e não o e do Kindle, de plástico, de pano. Na verdade, essa norma há de ser interpretada de uma forma mais ampla, teleológica.
Claro, a semântica mudou, no sentido de significado que a gente aprende de uma forma rápida inicial, mas ela claramente mudou.
Agora vamos para uma decisão do Supremo em que ele não deu essa ampliação conotativa a eventuais termos. Quando ele decidiu que o artigo 195 da Constituição, quando falava “empregado e empregadores e salário” era salário, empregador, não era remuneração de autônomo.
Todos se recordam essa decisão, que o relator foi o ministro Marco Aurélio, em que ele diz o seguinte: “Olha, eu tenho que obedecer ao vernáculo. Salário é um conceito tradicional na legislação brasileira construído por doutrina farta e absolutamente unânime no sentido do que é salário.” Que empregador é aquele que tem vínculo com o seu empregado e que o empregado vice-versa, tem o vínculo com o seu empregador.
A decisão do Supremo nesse caso foi claríssima no sentido de que se deve obedecer aos conceitos tradicionais da legislação do direito privado. Enfim, vamos entrar no artigo 109 e 110, não precisamos teorizar tanto, mas claramente uma interpretação do vernáculo, do termo, como utilizado sempre.
E o que que a gente começa a ver em algumas decisões do Supremo mais recentes? Uma que ainda ele não tomou explicitamente, mas que começou com uma decisão, um despacho, um voto do Peluso, no caso de lucros de bancos ou o chamado faturamento das instituições financeiras.
Nós tínhamos lá o conceito de receita bruta como produto da venda de bens e serviços ou de conta alheia ou de conta própria e quando os bancos discutem a questão do Cofins, dizendo que isso não seria um faturamento, não seria o produto da venda de mercadorias e serviços ou de bens e serviços, vem a Procuradoria dizendo o seguinte: “Não, isso daqui é atividade principal do banco”. Sem dúvida. Que isso “seria serviço”. Eu teria que entender isso como serviço.
E pega de cola o tratado do Gatt, porque, na Europa, serviço financeiro é serviço financeiro mesmo, tributado pelo IVA. Eu posso aplicar esse conceito no Brasil? Será que eu posso dar essa extensão, ou na verdade o certo, essa definição intencional conotativa aumentando propriedades àquela classe, àquela palavra?
É a decisão, por exemplo, do que o Peluso, que ainda não terminou no Supremo, por incrível que pareça, nós ainda discutimos essa questão dos bancos, no sentido de que é toda e qualquer atividade empresarial ou de natureza empresarial que está no seu objeto social.
E o que aconteceu? Veio a [Lei] 12.973 [de 2014] e mudou o conceito de receita bruta. Só que talvez a gente tenha tido uma decisão anterior do Supremo decidindo que a receita bruta é mais do que aquilo que a norma dizia. É o que a 12.973 diz.
Recentemente, nós estamos discutindo no CARF o ágio interno. O que que é pessoa vinculada, pessoa, enfim, ligada. A 12.973 veio dizer: ó, pessoa ligada é isso. Antes não dizia. Mas antes eu interpreto que esse tipo de operação é uma operação ilícita etc.
Então, acho que a primeira ideia, a primeira questão que se coloca agora é um pouco essa mudança, e eu tenho usado um termo, talvez, não tão preciso na conotação dos conceitos. Estão se colocando propriedades a um conceito que não existe no conceito. Ou seja, quando vem a jurisprudência e diz “juro é serviço” e eu tenho um texto constitucional que diz o que é serviço e tributa o spread bancário com o IOF, o que que ele é? Operação mercantil financeira ou ele é serviço? Porque tudo cabe como serviço. Eu vou obedecer a precisão das palavras ou não vou obedecer a precisão das palavras? Eu vou deixar crescer propriedades a uma classe de palavras ou locução, simplesmente para interpretar de uma forma ampliada? Intencional? Ou eu deveria dar aquele conceito mais ? Ou aquele conceito tradicional? Por quê? Porque a Constituição veio proteger o contribuinte. A segurança jurídica é do contribuinte. Ela é garantista do direito dos contribuintes. E os princípios estão hoje lá para isso. Não veio proteger o Estado.
Uma decisão que eu separei também aqui, que não foi de interpretação, é de confusão do Supremo. Lucros no exterior. Ele não decidiu nada. Ele só confundiu todo mundo. Coligado o que é. Controlado o que é. Dez votos diferentes. Eu não sei hoje dizer para o meu cliente como é a tributação do lucro no exterior.
Veja, pensando segurança jurídica, com certeza vai dizer o Humberto, se o ponto de vista do que o contribuinte analisa a norma, a sua respeitabilidade, como é o termo que ele usa, no sentido de que aqueles argumentos que ele realmente realiza é aquilo que ele crê verdadeiro na interpretação do texto.
Porque ele construiu uma norma com base nesses conceitos, nesses pontos. Veja: a decisão dos lucros no exterior… ele trouxe uma insegurança. Ao contrário, em vez de nos dar segurança, uma insegurança. E aí vem a Procuradoria da Fazenda Nacional dizendo o seguinte: “Olha, esse hoje contencioso é de R$ 60 bilhões”. Quem é o culpado? É o Supremo.
A medida provisória é de 2001. [MP] 2158, que foi julgada depois de 18 ou 17 anos no Supremo. 18 anos para julgar um tema de lucros no exterior! Se incide no dia 31 de dezembro de forma ficta, ou não.
Ou seja, como a interpretação pode dar insegurança para o contribuinte. Porque ele acredita que aquilo que ele interpretou, a norma que ele construiu é a que ele deve seguir. Mas depois de 18 anos o Supremo diz: “Não sei qual norma você deve dizer ou você deve aplicar”. Esse é o problema da interpretação.
O consequencialismo, que é um outro tema que a gente vem enfrentando na jurisprudência e no modo de, enfim, interpretar as normas. Nós tivemos, talvez, o debate mais moderno, mais contemporâneo, seja justamente a questão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS, onde, na verdade, o argumento estatal é do caos. Do caos financeiro. Que, se concedido esse tipo de interpretação, no sentido de que existe a exclusão, o Estado vai quebrar. Ou a conta é muito alta.
Só por esse tema, eu acho que já perde a importância na discussão do argumento. Mas a segunda questão mais grave é a total falta de transparência nesse consequencialismo, ou seja, nós fomos surpreendidos quando, junto à Procuradoria da Fazenda e ao Estado perguntamos: ok, nos mostre os números. Nos mostre o que representa esses sessenta e pouco bilhões de reais que o Estado perderia. Esse cálculo que você fez e entregou nos memoriais para os ministros, nos mostre que efetivamente existe. Claro, não mostrou.
Eu chamaria isso de consequencialismo do terror e não consequencialismo da própria palavra, enfim, da doutrina que hoje se implanta. No sentido de eu entender que, por questões outras, que não aquelas que a norma nos dá, os conceitos nos dão e etc., eu vou entender isso tendo por função uma eventual questão econômica.
Eu, quando aprendi na faculdade, não existia uma coisa chamada modulação de efeitos. E eu tive que me adaptar, porque é justamente o instituto que eu menos acredito. Porque as decisões podem ser no cheiro. Ou pode ser na conveniência de se dar ou não se dar uma modulação. Nós temos livros maravilhosos como da Misabel, enfim, outros autores que tratam desse tema, mas a modulação, hoje, veja a insegurança que nós temos por uma questão, que eu diria, dessa ideia de modulação ou de consequencialismo com relação ao ICMS na base de cálculo.
O que que acontece? Eu chego para a empresa e digo o seguinte: Abate os créditos ou não abate? Vai ter embargos de declaração no caso do Supremo? Vai dar modulação ou não vai dar modulação? Eu não terminei o caso. Eu não consegui mostrar o trânsito em julgado do caso.
Se a modulação é uma ideia para dar segurança, ela dá insegurança também. Ela cria um estado total de não saber qual é a interpretação que eu vou dar e para onde ela vai valer. Para o futuro, para o ado ou para o presente.
Ou seja, a interpretação, dentro do critério de interpretação dado pelos tribunais de que o contribuinte vá seguir como direção, como eu falei, como viés interpretativo da parte deles, nos cria todo esse sistema difícil. De definir o que que é correto em cada caso. E hoje na verdade nós também temos uma grande discussão, e atual… Eu na verdade, como falei a vocês, eu sempre fui muito advogado. Me formei com 22/23 anos e comecei a advogar. Precisava advogar, fui começar a advogar. Eu só fui fazer meu mestrado com 36 anos, já mais velho. Hoje quando vejo meus alunos lá na USP ou na FGV, todo mundo com 27 anos sendo mestre e alguns doutores com 29 anos eu me espanto.
Mas, enfim, hoje é o mundo. Igual aos meus filhos. Meus filhos fazem direito hoje, provavelmente serão mestres muito mais cedo do que eu. Mas eu fui aos 36. E fui ser doutor aos 46 anos. Hoje eu estou com 58.
E eu me pergunto o seguinte: Até que ponto essa questão hoje que se trava sobre conceito e tipo também, que é um debate também atual da doutrina. O meu mestrado era justamente o conceito constitucional de renda. Isso em 1996. Um trabalho modesto, mas foi esse que eu fiz.
Eu nunca pude conceber, apesar do respeito que eu tenho com o professor Schoueri, que é meu amigo fraterno, enfim, de que nós temos no texto constitucional, nas competências, tipos ou categorias que não precisam, necessariamente, se adaptar no todo àquele conceito ou àquele vernáculo, àquela locução que o texto constitucional expõe.
O que trouxe, por parte do Supremo, uma decisão que foi dos planos de saúde, que para mim é absolutamente fora de todo e qualquer tipo de razoabilidade. Primeiro, porque entenderam que serviço poderia ser um intangível e não aquela obrigação de fazer que nós fomos criando na doutrina, na jurisprudência como um todo.
Aqui não se quer negar a possibilidade de alteração dos termos, da semântica das palavras. As palavras mudam. Livro na década de 40, quando Jorge Amado trabalha para a imunidade dos livros, era o livro de papel. Porque o Getúlio Vargas não deixava importar o papel do exterior e queria impedir que a imprensa contra o Estado atuasse. Era o papel.
Mas a imunidade como norma de estrutura, norma de competência, ela permite a interpretação o quê? Teleológica. A interpretação finalística. Então o livro de pano, o livro de plástico, o Kindle, os e-books, são livros.
Eu tive um caso – e eu sempre digo, meu exemplo de advogado sempre foi o Hamilton. Eu até digo o seguinte: o Hamilton foi professor da USP. Hoje ele seria o titular, se ele tivesse seguido a carreira acadêmica, mas a advocacia talvez, e outras coisas, não tivessem permitido a ele. Mas eu digo que tive um caso que eu discuti isso em 1988. Era uma empresa que fazia bíblias no Brasil e ela tinha contratado o Cid Moreira para ler todo o Velho Testamento e o Novo Testamento para cegos. A Sociedade Bíblica do Brasil. E nós tentamos demonstrar à época que isso era um livro, só que estava em fita cassete. Perdi.
Será que hoje eu ganharia? Não sei. Mas a semântica muda. Ou seja, as palavras mudam. Mas nem todos os conceitos mudam. Talvez em um tipo de norma de competência, de estrutura, claro. Eu vou mudar a interpretação que eu dou à palavra, o significado, porque ela tem essa finalidade. Esse é o fim axiológico. O conteúdo axiológico forte eventualmente em uma norma.
Agora, quando eu tenho uma norma de conduta, às vezes eu não vou interpretar dessa forma. E justamente uma norma de conduta que diz que plano de saúde é serviço porque seria o intangível no sentido de que eu poderia utilizar a rede hospitalar, os médicos de determinados planos de saúde. E vou cobrar ISS do que eu pago todo mês e eu não fico doente?
Todos nós aqui estamos pagando X reais por mês para uma Amil da vida, uma Unimed. Quantos nós ficamos doentes? Quantos usamos a rede? Talvez nenhum de nós. Existe serviço nisso? Muitos dizem: isso seria uma operação securitária atípica. Ou seja, o risco da conotação.
A conotação, ela tem justamente uma definição, ela se diz também como sinônimo “intensional”, com “s”. É justamente a ideia de eu colocar propriedades… Quanto mais propriedades eu coloco, menos denotação eu tenho. Mais preciso fica o conceito.
E é por isso que a legislação brasileira usa as definições. É justamente nesse trabalho de 96 [que] eu vou falar das definições. Então, o artigo 43 do Código Tributário é uma definição estipulativa: renda é isso, provento é isso. Claro, ele não fechou tudo, mas quanto mais propriedade, quanto mais conotação, mais denotação, eu consigo precisar mais o objeto.
Essa é a ideia que o tipo impede. Ele na verdade deixa válvulas no conceito, ele não fecha o conceito, ele amplia o conceito. E isso é totalmente contraditório a estipulação rígida de competência.
Eu não vou me atrever de falar de reforma [tributária], mas vou terminar só com esse item… Jogar o tema para o Hamilton, que seja do Hamilton. Nós temos aí um tributo sobre bens e serviços. Muito genérico: o que são bens, o que são serviços. Eventualmente, numa competência tripartite, das três pessoas jurídicas de direito público. Alguém vai ter que definir o que são bens e o que são serviços. Ou eu vou seguir um conceito que a doutrina me deu, que a jurisprudência já consolidou, ou eu vou buscar conceitos totalmente amplos. E quando eu tenho uma conotação muito pequena eu tenho o risco de uma maior denotação, portanto, de incluir coisas que talvez não estejam no conceito.
Por isso que esse grande debate atual sobre as competências rígidas do nosso sistema tributário coloca em xeque a interpretação. Acho que esse é o tema, essa é na verdade a grande questão que nós estamos tratando.
E o Heleno aqui… e o Everardo também perguntou muito sobre o processo istrativo. Ou seja, quando eu tenho uma interpretação ou uma decisão por parte de um determinado órgão istrativo, do CARF ou do tribunal de impostos e taxas, que na verdade não seguem conceitos. Nós temos aqui alguns colegas do CARF, se você for coletar toda a jurisprudência do CARF do que é simulação, abuso de fórmula, abuso de direito, negócio indireto… você não chega a lugar nenhum.
Tanto é que um dia na GV falaram: vamos fazer um trabalho de pesquisa para saber o que é simulação. Eu falei assim: joga fora, não vai chegar a lugar nenhum. Porque cada um usa um conceito diferente, porque não entende e não conhece o conceito. Colocam propriedades no conceito que não existem, confundem um com os outros. Então esse é o tema que a gente tem que voltar na questão da interpretação.
Então, o ativismo judicial, o consequencialismo… Todas essas questões de interpretação econômica na norma, que é antiga, mas que volta sempre. Essência e forma agora, porque a contabilidade diz em essência, não diz na forma. Será que é a mesma coisa na área jurídica? É claro que não é. São coisas diferentes.
Então a interpretação, obviamente, como um tema complexo, um tema de difícil pontualidade e definição, faz com que nos preocupemos justamente de estabelecer e voltar a ideia de que a Constituição protege o contribuinte. É uma Constituição garantista, porque o Estado tem a autotutela. E quando alguém tem autotutela eu não tenho paridade nessa relação.
Não quero dizer que o Estado deve ser alijado da discussão, simplesmente a gente tem que ver a constituição como ela é. E nesse sentido talvez seja esse o defeito que a gente esteja tendo em matéria de interpretação.
Obrigado Everardo, eram essas as palavras que eu imaginei.
Questão de Everardo Maciel para Roberto Quiroga:
EVERARDO MACIEL: Eu devo dizer que depois dessa brilhante exposição você quase que cortou qualquer possibilidade de fazer perguntas, porque você respondeu a quase todas que se poderia fazer ao falar sobre o assunto.
Eu ia pedir para você, dentro do âmbito da interpretação, se pudesse dizer uma palavrinha a mais sobre tal como é hoje o instituto da consulta no âmbito tributário e suas limitações, o que há de errado nela e o que há de certo.
ROBERTO QUIROGA: Bem, também sendo prático: eu acho o instituto da consulta perfeito, o problema são as pessoas. Que não entenderam os conceitos da consulta. Veja, existe coisa mais razoável de que, na dúvida de uma interpretação da norma – não em tese, em concreto –, eu consulte o Estado para dizer o seguinte: essa interpretação que eu estou tendo é correta ou não é correta?
O problema é que quem é o consultor, ele não quer saber esse princípio. Assim, eu sou muito pragmático nesse assunto. O instituto é bom. Claro, que pode ser melhorado. Talvez a gente possa fazer uma coisa como nos EUA etc. Mas é fundamentalmente as pessoas, Everardo.
Se eu na verdade tenho um consultor que já está predeterminado a dizer não, o Instituto não vale nada. Talvez eu tivesse que ter um concurso para consultor ou no órgão de julgamento uma questão separada, porque aí eu tenho o quê? Pelo menos, a tentativa de imparcialidade.
Se fala também que mesmo esse concursado vai ser Estado porque quem paga o salário dele é Estado, então ainda sim eu poderia itir uma certa parcialidade.
Mas na verdade a consulta com o Instituto é maravilhoso. O problema é que quando eu dou para o consultor, é no órgão que lança, é no órgão que justamente tem o poder da tributação, deixa de ser imparcial e vira letra morta. Ou seja, nós não conseguimos no instituto da consulta [eliminar] essa imparcialidade.
Coisas que talvez a gente tenha conseguido no CARF, até determinado momento. E eu digo do CARF, gente: hoje nós temos dois CARFs. O CARF da câmara superior e o CARF das câmaras baixas, são dois CARFs.
Veja, quem quer decidir contra já decide contra e não pensa. Quem quer decidir julgando, vai decidir bem ou vai decidir ruim. Mas quando eu tenho dois órgãos de julgamento, os dois com vieses diferentes…
E eu digo isso em todos os seminários: quando na reabertura do CARF o ministro da Fazenda chega no dia, com todos os conselheiros presentes, e diz o seguinte: “Eu tenho déficit público de R$ 150 bilhões, eu preciso de R$ 110 bilhões para cobrir o déficit público…” Ele ditou o julgamento. Naquele dia foi dada a mensagem de como teriam que se decidir.
O Levy chega no discurso no CARF e diz o seguinte: “eu preciso de R$ 110 bilhões de vocês”. Como vocês acham que ele vai decidir? São as pessoas, Everardo. Eu acho que não é tanto o instituto. Tem que mudar as pessoas e é difícil.